Situada na impressionante Basílica de Santa Croce, em Florença, a Tavola Bardi é uma obra-prima da arte medieval que ilustra a vida de um dos santos mais venerados: São Francisco de Assis. Este painel, datado do século XIII, é uma importante representação da espiritualidade e do legado de São Francisco, destacando momentos significativos de sua vida, bem como suas interações com a natureza e a humanidade.

A Obra

Considerada uma das mais significativas do período, a obra foi provavelmente encomendada pela família Tedaldi e, desde 1595, ocupa o altar da capela Bardi, dando origem ao nome “Tavola Bardi” e ao título de “Maestro della Tavola Bardi” para seu autor, antes de ser atribuída a Coppo di Marcovaldo. Atualmente, está temporariamente exposta no transetto, enquanto os afrescos de Giotto passam por restauração.

A Tavola Bardi é composta por 20 cenas que narram eventos importantes da vida de São Francisco. Cada história carrega simbolismo e emoção, capturando a essência do santo que abandonou as riquezas materiais em prol da pobreza e da simplicidade. As cenas são dispostas para contar uma narrativa coesa, permitindo que os visitantes entendam a profundidade de sua missão e ensinamentos.

A execução da obra situa-se entre a canonização (1228) e a determinação de destruir biografias anteriores à de São Bonaventura (1266), podendo ser datada estilisticamente entre 1245-1250. A atribuição a Coppo di Marcovaldo, principal artista florentino antes de Cimabue, se deve à plasticidade das figuras, sua expressividade marcante e uma menor atenção à representação do espaço e da arquitetura.

Significado do Cartilho na Parte Superior da obra

São Francisco, ao centro, é representado em pé; na mão esquerda, ele segura um livro fechado (o Evangelho); com a direita, ele faz o gesto de bênção semelhante ao de Cristo. Acima de sua cabeça, dois anjos o aclamam, separados por um cartilho sustentado por uma mão celestial, onde se lê: hunc exaudite perhibentem dogmata vitae.

A obra se apresenta como uma verdadeira ícone. A vida exemplar de São Francisco é proposta para veneração e imitação. O cartilho é sustentado por uma mão (a de Deus) e é destacado pela presença de dois anjos que o indicam, quase convidando os espectadores a ouvirem e imitarem Francisco. O texto remete ao evangelho que descreve a Transfiguração do Senhor (Mt 17,5), onde Deus exorta os Apóstolos a ouvir o Seu Filho. O cartilho, portanto, é um convite a seguir os dogmas de vida, isto é, os preceitos e ensinamentos de vida, uma vez que são as palavras de Deus, que Francisco (novo evangelista, segundo Tomás de Celano) não escreve, mas transmite. O modelo é formado pelas palavras de Cristo: o Evangelho e as normas ali contidas.

Os frades que aparecem nas intersecções das molduras, aclamando as várias histórias, respondem ao comando divino e convidam a expandir o consenso exigido pela imagem. “O Pai permitiu que o Filho se oferecesse no altar da cruz… deixando a nós o exemplo para que pudéssemos seguir suas pegadas…”, disse Francisco na Lettera a tutti i Fedeli; essas palavras podem ser repetidas como um resumo comentado para esta pintura.

A imagem do Santo

A imagem do santo, aquele frade majestoso e alto, é diferente. Francisco era pequeno, mas uma verdadeira ícone, um objeto sagrado que unia céu e terra. Aquele homem humildíssimo havia tocado o divino e agora poderia servir de ponte ou pilar para o Altíssimo.

Sua veste simples e o capuz revelam apenas um rosto pensativo, marcado por traços fortes, silencioso e expressivo. Não parece mais um rosto de Assis, mas sim um Cristo bizantino precioso. O livro dos Evangelhos, coberto pela cruz e selado, repousa sobre seu coração, onde se encontram as palavras do crucifixo de São Damião e a leitura do Evangelho.

As estigmas aparecem bem marcadas, emanando um amor acolhido e escolhido, que se tornara profundo e cada vez mais ardente. Pensando nos anos em que começou a carregar esses sinais, Francisco quase sentia vergonha e os mantinha escondidos. Agora, porém, o pintor precisava manifestar o esplendor que ele representava para seu tempo. A solidez da figura e a clareza daqueles detalhes únicos continuariam a falar às novas gerações.

As 20 Histórias da vida de Francisco de Assis

Ao redor de Francisco de Assis e na parte inferior, estão dispostas vinte cenas que ilustram a vida e os milagres do santo. As várias cenas são contidas por uma borda ricamente decorada, nas intersecções dessas molduras, há frades em meia figura, também acclamando seu fundador.

São Francisco é retratado em pé, abençoando, com um livro na mão esquerda. Na faixa decorativa interna, há pequenos bustos de frades franciscanos, que podem aludir à comunidade de Santa Croce da época. As vinte histórias que cercam Francisco – compondo a narrativa mais completa sobre as suas vivências antes do ciclo de Assis – são extraídas da Vita Prima de Tomás de Celano (1228-1229) e devem ser lidas no sentido anti-horário, começando pelo topo à esquerda.

1. Francisco, preso pelo pai, é libertado pela mãe

O conflito familiar: um pai, uma mãe e um filho. Pedro de Bernardone não aguentava mais os excessos desse filho. Era aceitável que ele desperdiçasse dinheiro com os amigos, mas agora dar tudo aos pobres? De jeito nenhum, isso estava arruinando a loja.

Partindo para uma viagem de negócios, ele o prendeu e o deixou em casa. A cena, com grandes construções ao fundo, captura o momento em que o pai retorna e vê a mãe libertando o filho. Francisco, já com a auréola, ainda veste as boas roupas de casa. O pai, com os braços ameaçadores, vê seu filho escapar, pesado pelo manto escuro, e grita contra a esposa, que é muito doce e submissa.

Histórias comuns de família, expressivas daquele momento europeu em que a classe mercantil emergia e os intercâmbios nos mercados cresciam. Novos encontros davam origem a casamentos com mulheres de outros países. Os filhos desfrutavam das riquezas acumuladas pelos pais e, em um momento, um pai deve defender seu capital.

É sua maneira de garantir o futuro dos filhos. Uma mãe, por outro lado, continuaria a mimar e defender os filhos. Raiva de um lado e ternura do outro, impossível encontrar um meio-termo. Esse filho é muito novo em relação às expectativas de dois bons pais.

2. Diante do Bispo Guido

Despede-se das vestes diante de Guido, bispo de Assis, e seu pai, Bernardone;

Diante do bispo Guido, a família está dividida, mas quem manda é o pai. Para tomar as rédeas da situação, ele acusa o filho e pede uma decisão ao bispo de Assis.

À direita, a família de Francisco; o bispo, sentado em sua cátedra, adornado com vestes episcopais, o cobre com seu manto, com toda a autoridade. Uma mensagem que talvez vá além da benevolência paterna do bispo Guido. Atrás dele, um diácono segura o Evangelho. A Igreja, embora ornamentada, está sobrecarregada; é a guardiã e anunciadora do novo filho que está sendo gerado em seu seio, que vem à luz como um homem novo.

No mundo, nasceu um sol entre as duas famílias. Os bens de Pedro de Bernardone, preciosos e belos, estão jogados ao chão, mas sufocariam essa nova vida. É preciso abandoná-los e devolvê-los. Um contraste aberto entre a paternidade do pai Pedro e a do bispo, quase como dois princípios inconciliáveis.

Nos extremos do quadro, duas altas figuras apresentam quem é capaz de gerar e fazer viver o Evangelho: a mulher, em sua emarginada posição, é a verdadeira sabedoria oferecida aos homens. Esses pais, com a única força do poder ou da autoridade, não conseguem perceber o bem que está nascendo na Igreja ou na família.

3. Francisco, o Novo Cristão

3. Desenha o hábito franciscano diante do bispo;

Francisco, o novo cristão. Estamos por volta de 1200. Francisco, com 22 ou 23 anos, vestido como eremita, com um típico bastão, desenha um hábito em forma de cruz com um capuz.

O bispo e o diácono assistem à cena. Francisco está passando de um estilo de vida reconhecido pela Igreja para um novo estado que está criando.

São Boaventura diz que o bispo, no dia de sua despojamento, lhe havia dado a veste pobre de um de seus servos. Francisco, traçou uma cruz sobre ela e se revestiu, tornando-se um simples cristão, um homem novo vestido de pobreza em forma de cruz. Essas são as vestes das núpcias com a Senhora Pobreza.

A Igreja lhe dá algo, e ele a impregna de vida cristã. O diácono, que na cena anterior segurava o Evangelho, agora parece indicar Francisco: “Eis o novo evangelista.”

4. Eis o que eu quero…

Escolhe a pobreza evangélica, manifestando-a ao se despir das sandálias

Estamos em fevereiro de 1208, na festa de São Matias. Ao ouvir o Evangelho proclamado na liturgia do dia, Francisco é tocado pelas palavras de Cristo aos apóstolos: “Vão ao mundo sem ter ouro, nem prata, nem bolsa, nem pão, nem bastão, nem calçados, nem duas túnicas, mas preguem apenas o Reino de Deus e a penitência.”

“Isso eu quero, isso eu peço!” exclamou com todo o coração. No centro da cena, o altar, o Evangeliário e o sacerdote são pilares de sua fé e de seu ser na Igreja. Às laterais, um acólito atrás do diácono se inclina admirado em direção a Francisco.

Atrás do santo, a comunidade de fiéis, todos sob o mesmo teto. Mas ele, quase como um atleta nos blocos de partida, está começando sua corrida, saindo em direção ao Evangelho, um pé já descalço. O olhar do sacerdote está voltado para ele, mostrando-lhe o Evangelho, com benevolência e expectativa de uma Igreja maravilhada, esperança de uma novidade inesperada.

5. Do Papa para ter uma regra

Francisco e seus companheiros são recebidos por Inocêncio III, que aprova verbalmente a Regra franciscana (ratificada oficialmente por Honório III),

É primavera de 1209, ou talvez do ano seguinte. Francisco, já com 11 companheiros, sente a responsabilidade e a pertença que o impulsionam a ir a Roma, ao Papa Inocêncio III. Apresenta-se com uma regra muito simples, composta de trechos evangélicos e algumas notas de comportamento.

À esquerda, uma igreja de cúpula vermelha e o diácono que leva o Evangelho representam a força que Francisco tem às suas costas. Isso é o que a Igreja lhe dá e que ele propõe em pé, como um arauto. Mas ele também sabe se colocar de joelhos para recebê-lo do Papa. Esse Evangelho, essa regra, é o que o mantém unido à Igreja, assim como ela é em sua magnificência, que a faz parecer um pouco separada.

O Papa, com três bispos atrás dele, sabe reconhecer, abençoar e enviar este novo homem do Evangelho. Francisco, vestido com o hábito marrom, a corda na cintura, a tonsura e a barba, está agora em sua nova forma de vida. Enquanto o Papa o abençoa, confere-lhe o Evangelho, parecendo colocar suas mãos sobre ele como em uma promessa, recebendo-o totalmente como um compromisso a ser realizado.

6. O Primeiro Presépio

Institui o presépio em Greccio

Estamos em 1223, na noite de Natal, em Greccio. Francisco esteve na Terra Santa em 1219, e o contato com a terra da encarnação gerou em seu coração o desejo de que todos pudessem ver com os olhos da carne a humildade de Deus, que se fez homem como nós pela Virgem Maria.

Naquela época, era complicado visitar os locais sagrados da peregrinação cristã, pois estávamos na Quinta Cruzada. Assim, Francisco convidou todos para Greccio, para que se tornassem protagonistas daquela encenação sagrada, criando uma nova forma de peregrinar em direção àquele que sempre ocupava seus pensamentos.

A cena tem seu centro na criança repousando sobre a manjedoura de rocha. A palavra do Evangelho parece quase escorregar do altar e cair sobre Ele, a Palavra feita carne. Três personagens em vestes brancas rituais à esquerda, do outro lado, os leigos com vestes festivas e cheias de cor. Francisco avança um pouco para proclamar a palavra do Evangelho. Quando diz “Belém”, parece que o balido de uma ovelha ecoa, e enquanto pronuncia o nome da criança, ele lambe os lábios.

Um arco une toda a cena: sacerdotes, diáconos e leigos, a Igreja em torno do mistério fundamental do Verbo feito carne para a nossa salvação. Força e doçura de uma humanidade amada por Deus, escolhida para nos comunicar sua proximidade, representada pela ternura de Francisco.

7. A Pregação aos Pássaros

Francisco prega aos pássaros

Enquanto São Francisco viajava de cidade em cidade, reunindo membros para sua nova ordem religiosa, ele se deparou com uma multidão de pássaros nas árvores. Sentindo-se inspirado por sua presença, decidiu pregar a eles sobre sua conexão com tudo o que é e seu dever de cantar seus louvores.

Dirigindo-se aos pássaros como suas “pequenas irmãs”, São Francisco falou sobre os muitos modos em que estavam conectados a tudo o que é e ao mundo natural. Ele os lembrou de sua liberdade de voar, do alimento fornecido pela natureza, e da beleza de seus cantos.

Os pássaros, para Francisco, eram símbolo das classes mais humildes, os pobres que acolhem a Palavra e dos quais é o Reino dos Céus. Ele se referia à cotovia como “irmã cotovia”, e a cotovia, como os religiosos, é um humilde pássaro que vai alegremente à procura de algum grão e, se encontra até entre os resíduos, o tira e come.

Voando, louva o Senhor suavemente, semelhante aos bons religiosos que, desapegados das coisas do mundo, vivem sempre voltados para o céu e cuja vontade não deseja senão a louvação de Deus. O vestuário da cotovia, suas penas, têm a cor da terra, assim oferece aos religiosos o exemplo de não terem vestes elegantes e de belas cores, mas de preço modesto e cor semelhante à terra, que é o elemento mais humilde.

8. Francisco se Apresenta ao Sultão em Damieta

Francisco dialoga com muçulmanos perante o Sultão

Francisco se apresentou ao Sultão Al-Malik Al-Kamil em Damieta, no Egito, em 1219, durante a Quinta Cruzada, como um ato corajoso de paz e diálogo em meio ao conflito armado entre cristãos e muçulmanos. A iniciativa de Francisco, que foi recebido com honra e respeito, demonstrou o valor da fraternidade entre os povos, rompendo barreiras culturais e religiosas para buscar a compreensão mútua e a solução pacífica de problemas, um gesto que marcou a história das relações inter-religiosas. 

Ele consegue ser apresentado ao sultão Malik al-Kamil. O relato é certo em sua historicidade, embora ao seu redor tenham florescido ampliações e hipóteses. Grande era a coragem que fundamentava aquele gesto e grande a confiança no coração de cada homem, mesmo daquele que naquele momento poderia ser visto como inimigo.

Aquele sultão se revelou um homem muito iluminado, buscando caminhos de diálogo para resolver o problema de Jerusalém e dos peregrinos. Tomás de Celano relata que o sultão via Francisco como um homem diferente de todos os outros, estava muito contente com suas palavras e o escutava com prazer.

O quadro, repleto de personagens, vai paralelo à pregação aos pássaros. Todos os homens aguardam o encontro com o Evangelho que Francisco mantém aberto, com clareza na mão esquerda, oferecendo-o com a direita, admoestando e convidando a olhar para o trono. Malik al-Kamil o escuta atento e comovido.

9. Libera um pequeno cordeiro

Resgata um cordeiro pastando entre cabras

Um evento delicado que mostra como o olhar de Francisco sobre as criaturas sempre revelava nelas a imagem de seu Senhor. Ele estava indo em direção às Marcas e viu um rebanho misto de cabras, carneiros e porcos. Apenas um cordeiro branco, humilde e tranquilo, pastava na grama.

“Veja”, diz a Frei Paulo, “aquele cordeiro sozinho e manso entre as cabras. O Senhor nosso Jesus Cristo, cercado e perseguido pelos fariseus e sacerdotes, devia realmente parecer como aquela humilde criatura. Por isso, peço a você, meu filho, por amor a ele, que também você, tomado de compaixão, a compre e a leve para longe dessas cabras e desses bodes.”

Mas os dois pobres frades não tinham nada, nem mesmo a túnica. A bondade do Senhor, que comovido pela sensibilidade deles, comprou a ovelha e a deu a eles. Eles a levaram ao bispo e depois a presentearam às claustras do mosteiro de São Severino. Com sua lã, fizeram uma túnica para o santo, que a recebeu com devoção e a apertou festivamente contra seu coração.

O quadro mostra o cuidado com que Francisco pega o cordeiro nos braços e o aperta contra si, quase roubando-o daquele ambiente hostil. Agora, era ele, Francisco, quem se tornava seu bom pastor.

10. Salva do abate dois cordeiros

Francisco troca suas vestes por dois cordeiros que seriam sacrificados.

Um relato quase paralelo, rico de sensibilidade e de atenções franciscanas. Dois cordeiros amarrados pelas patas a uma vara, levada às costas por um pastor, estavam prestes a ser vendidos no mercado e abatidos.

O que poderia fazer, afinal, aquele pastor? Eram o fruto de seu trabalho, e ele precisava de dinheiro. Os comerciantes o pagariam, e depois matariam os dois cordeiros para fazer um bom assado. Francisco é tomado pela compaixão, ouve seus balidos como uma mãe que ouve seus filhos chorarem. Ele os acaricia para consolá-los, como ela faz com seus filhos assustados.

Ele gostaria de libertá-los, mas não tem um centavo, nem ele nem Frei Paulo. Em troca, porém, poderia dar a capa que recebeu emprestada no dia anterior, que vale muito mais. Negócio fechado. Mas, realisticamente, o que ele faria agora com os dois cordeiros? Frei Paulo o aconselha: “Devolveremos ao pastor, que se comprometerá a não vendê-los mais, a mantê-los e cuidá-los com carinho.”

11. As Estigmas do Seu Encontro com Cristo

Francisco recebe as estigmas.

Na solidão do Monte da Verna, Francisco chega a um clímax. Ele é assimilado a Cristo crucificado, com os sinais da paixão. A dor de seu Senhor o atravessou a alma desde os tempos das conversas com o crucifixo de São Damião.

Agora, dos furos dos pregos e do costado, emergia um amor vivido por anos e tornado mais ardente pelas dificuldades recentes, pelas incompreensões e incoerências dos frades. Um ano antes, o Papa Honório III havia assumido sua família em nome da Igreja, aprovando a regra.

Em novembro de 1223, Francisco começava um itinerário pessoal, da encarnação celebrada no Natal em Greccio à crucificação no Calvário da Verna. Ele havia pedido para poder retribuir um pouco da dor que Cristo havia sentido por ele em sua certíssima paixão, mas também pediu um suplemento de amor para poder realmente suportá-lo.

Ele foi atendido, e as estigmas o selaram naquela noite em torno da festa da exaltação da cruz. Ele carregou em sua carne, por dois anos, o último selo de cristão.

Por sua parte, ele sempre tentou esconder aqueles sinais. Somente Clara e Frei Leão sabiam de algo. A maioria dos frades só foi informada após sua morte, por Frei Elia, com uma carta comovente. No quadro, apenas Francisco e Cristo no crucifixo entre as asas do serafim. Estamos no puro encontro, sem testemunhas.

12. Necessidade de Verdade e Grande Humildade

Faz pública penitência por ter quebrado o jejum,

Francisco amava dar sinais claros do que vivia. Queria ser verdadeiro, conhecido pelos outros como realmente era diante de Deus. Temia que a estima que tinham dele criasse uma imagem superestimada.

Escolheu uma pobreza extrema, até mesmo na alimentação. Ele realmente ficou doente e precisou ser alimentado com um pouco de carne de frango para ter ao menos forças para caminhar. Que contradição! Segundo seu espírito de penitência, ele quis entrar em Assis e, diante de todos, fez-se despir do hábito, com uma corda no pescoço, e foi vilipendiado por um de seus irmãos.

Isso causou grande maravilha entre as pessoas e todos foram ainda mais levados pelo seu exemplo a segui-lo na penitência e no jejum. A cena, dentro do habitual esquema triplo dos vários eventos, vê Francisco no centro, sentado e com as mãos atadas à coluna, reminiscência da flagelação de Jesus.

À esquerda, três homens admirados por ele, como indica o gesto do primeiro, à direita, em vez disso, as nobres damas com vestes esplêndidas, com os rostos fixos nele, quase petrificadas de maravilha, sem qualquer gesto, aquele homem tirava o fôlego.

13. Francisco Continua a Seguir Seus Frades

Francisco aparece a Frei Monaldo enquanto os frades se reúnem no Capítulo de Arles durante o sermão de Santo Antônio.

Aparecendo no capítulo de Arles, Tomás de Celano, o primeiro biógrafo de Francisco, intitula um capítulo “Vida Primeira XVIII”, como o Beato Francisco.

Mesmo ausente, ele via seus frades. Enquanto em Arles, o provincial havia reunido os frades em capítulo, em 1224, Frei Antônio pregava a eles sobre Jesus. Outro frade, chamado Monaldo, viu Francisco elevado em ato de benção sobre os presentes.

Francisco, nesses anos, aparecia pouco. Estava tomado por seus desejos de recomeçar a viver nos eremitérios. Muitas vezes estava doente, e as dificuldades de relacionamento com alguns ministros que não haviam gostado da regra não diminuíam. No entanto, alguns eram realmente fiéis à regra e muito ligados à sua pessoa.

Nos modos de fazer capítulo, nos temas de Cristo e nas pessoas de sua confiança, como o teólogo (Santo) Antônio, Francisco vela e os abençoa. Frei Antônio havia chegado alguns anos antes de Portugal, bem formado em teologia, rico em espírito de evangelização, até mesmo com o desejo de martírio.

A ele, Francisco havia escrito uma carta: “A Frei Antônio, meu bispo, saúde. Tenho prazer que você ensine teologia aos frades, desde que nessa ocupação você não extinga o espírito da santa oração e devoção, como está escrito na regra.”

No quadro, Frei Antônio é retratado como um pregador idoso, com barba branca. Os frades aparecem unidos em uma fraternidade de atenção e apoio mútuo.

14. Francisco entre os Leprosos

Francisco instrui os leprosos, carregando um em seu colo e lavando os pés dos demais.

Francisco lava os pés dos leprosos. À esquerda, em uma cena menor, ele segura um deles em seu colo. Os leprosos foram o encontro determinante de sua vida. Ele mesmo conta isso em seu testamento. Ele sentia repulsa, mas uma vez que conseguiu superar a aversão, aproximou-se de um e o beijou.

A cena do quadro faz pensar no gesto da Última Ceia, quando Jesus se pôs a lavar os pés dos discípulos, dizendo-lhes para fazerem memória disso, lavando-se uns aos outros e amando-se como Ele os amou. A cena à esquerda, com o leproso em seu colo, sugere a atenção e o cuidado que Francisco pede a seus frades que tenham uns pelos outros.

Se a mãe nutre e ama seu filho carnal com quanto mais afeto se deve amar e nutrir o irmão espiritual. E se um deles adoece, os outros frades devem servi-lo como gostariam de ser servidos.

15. As Solenes Exéquias de Francisco

Ao falecer, sua alma é levada ao céu por anjos e curam-se os coxos.

É o solene rito fúnebre ao redor do corpo de Francisco, depositado em um grande catafalco vermelho. É já uma apoteose, não mais a terra nua da Porciúncula, nem o choro inconsolável dos frades, mas um fundo totalmente glorificante e testemunhal.

Alguns frades, colocados de ambos os lados, carregam velas. Um, com estola de sacerdote, tem em mãos o livro do rito. Ao centro, um frade com o turíbulo honra o corpo de Francisco, agora contemplado do alto do céu e invocado por alguns pobres e doentes aos pés do catafalco.

Assim escreve Tomás de Celano: “Viam ainda sua carne, que antes era morena, brilhar agora de um belo candor, uma beleza sobrenatural que comprovava nele o prêmio da bem-aventurada ressurreição. Admiravam, enfim, seu rosto semelhante ao de um anjo, como se estivesse vivo e não morto, e suas outras partes do corpo tornadas macias e flexíveis como as de uma criança. Não havia contração dos nervos, endurecimento da pele ou rigidez do corpo, como costuma ocorrer com os mortos, mas a mesma mobilidade dos seres vivos.”

16. Dois Milagres

Durante o funeral, cura uma jovem com o pescoço torto e expulsa demônios de uma mulher de Narni e de Pedro de Foligno.

Dois milagres. Um é localizado perto de sua tumba. Inicialmente, Francisco foi sepultado na igreja de São Jorge, dentro das muralhas de Assis. Frei Elia logo começou a trabalhar no grande projeto que hoje é conhecido como o Sacro Convento, onde se encontra a tumba do Santo.

A primeira história é de uma garota com grave malformação no pescoço, que estava horrivelmente inclinada para um lado, com a cabeça colada ao ombro, de modo que não podia olhar para cima, a não ser de lado e com grande esforço. Colocada por um tempo sob a urna que continha o corpo do santo, foi miraculosamente curada. A alegria aparece à esquerda; a garota está nos ombros da mãe, como em um triunfo, com o pescoço bem ereto e a cabeça alta.

A cena central é mais dramática, onde uma mulher endemoninhada é contida com dificuldade por duas pessoas, enquanto o médico, reconhecível pela veste de arminho, está assustado. Atrás deles, três demônios negros saem do corpo da mulher. Francisco e seu companheiro abrem os braços como a espantá-los, enquanto uma figura mais abaixo, vestida de vermelho, fica atônita diante do que está acontecendo. Talvez se refira a um milagre ocorrido em Cidade de Castelo.

17. Sua Canonização

Francisco é canonizado por Gregório IX.

É 16 de julho de 1228. Não se passaram nem dois anos desde a morte de Francisco, quando foi iniciado o processo de canonização. Ficou claro que a santidade desse homem não precisa da verificação de milagres.

A cena retratada retoma as expressões solenes de Celano. O Papa Gregório IX, adornado com vestes papais e paramentos sagrados, cintilantes de pedras preciosas, cercado por bispos e cardeais, preside a canonização.

Seu gesto benéfico parece autorizar o personagem elegante, talvez um notário com um volume nas mãos, a proclamar os milagres do santo. Pouco antes, o próprio Papa, emocionado até às lágrimas, havia lembrado da santidade da vida de Francisco.

Ele continuaria a chorar mesmo durante a leitura feita pelo diácono Otaviano, molhando com lágrimas os paramentos sagrados. A cena à esquerda está cheia de frades vestidos com hábitos brancos da liturgia festiva. O povo, que não aparece no quadro, chorava em espera amorosa e impaciente pela leitura do decreto.

18. Salva uma Nave do Naufrágio

Francisco salva do naufrágio um navio que partia de Ancona.

Um fato contado por São Boaventura. Uma tempestade e marinheiros que, temendo não conseguir, invocam São Francisco. Boa Ventura fala da aparição de uma luz que os tranquilizou. Na Tavola Bardi, representa-se Francisco com os marinheiros que se dirigem a ele com apreensão angustiada. Ele os abençoa com uma grande calma que se comunica também às ondas turbilhonantes e revoltas em uma baía entre rochas vermelhas e montanhas verdejantes.

Um evento, um milagre, e talvez uma mensagem para o barco da Igreja, sempre balançada pelas tempestades que afligem o coração de todos aqueles que a governam ou estão dentro dela. O navio pode se sentir seguro, pois a bordo está um grande santo, tranquilizador. Francisco já havia lidado com marinheiros e tempestades quando alguns deles não quiseram embarcá-lo porque tinham poucos suprimentos a bordo. Ele e seu companheiro se infiltraram clandestinamente.

Um estranho personagem se apresentou ao navio, trazendo alimentos para os dois clandestinos. A tempestade prolongou os dias de navegação, e os suprimentos realmente haviam acabado. Foi a comida trazida para os frades que salvou todos, incluindo a tripulação. Receber Francisco e seus frades tornava-se cada vez mais uma bênção para todos.

A mensagem era clara: acolher esses novos pobres restaurava abundância e segurança espiritual e material à Igreja e ao mundo.

19. Uma Multidão de Milagrosos Agradece a Francisco

Peregrinos e marinheiros gratos levam velas para seu túmulo.

Uma multidão de milagrosos agradece a Francisco. Uma dezena de homens, cobertos apenas por um pano branco atado na cintura, trazem velas a São Francisco. Ele aceita, mas atrás dele, um frade parece indicar para cima que a honra seja reservada ao Altíssimo. Francisco e o frade estão atrás de um altar coberto por uma rica toalha vermelha.

São os marinheiros do relato anterior, talvez a intercessão de todos aqueles que, por sua intercessão, encontraram saúde e salvação. A obra deveria falar de Francisco, mas também sustentar e aumentar a devoção a ele. As fontes franciscanas reúnem relatos de milagres que envolvem todo tipo de pessoas e problemas, nos quais muitos experimentaram sua intercessão.

Ao lado da admiração por sua santidade e pelos fatos de sua vida, crescia a gratidão pelos benefícios que Francisco, do céu, continuava a infundir em seus devotos.

20. A Cura de um Pobre Aleijado

Francisco cura Bartolomeu de Narni da gota.

Bartolomeu era um mendigo que dormia nos campos. Uma manhã, ao acordar, encontrou-se paralisado e incapaz de se mover. Com o tempo, a perna e o pé foram se encurtando e tornando-se insensíveis. Uma noite, em sonho, Francisco lhe disse para ir colocar os pés em um lago; isso o curaria.

O homem perguntou ao bispo como deveria interpretar esse sonho e foi aconselhado a seguir o comando de Francisco. Ele se pôs a caminho, com dificuldade, em direção ao local, exausto, sentiu-se confortado e continuou, mas já era noite e ele havia perdido o caminho. Uma voz o guiou até que chegou ao lago.

Enquanto mergulhava, sentiu uma mão tocar seu pé e outra devolver articulação à perna. Curado, Bartolomeu salta de dentro da água, louvando e bendizendo a onipotência do Criador e seu bem-aventurado servo Francisco, que lhe concedeu uma graça tão grande. Ele havia estado assim por seis anos e já era um homem idoso. O milagre de Bartolomeu de Narni foi registrado nos atos do processo de canonização de Francisco.

No centro do quadro, Francisco se inclina amorosamente sobre os membros doentes de Bartolomeu. Agora curado, Bartolomeu, com as muletas a tiracolo e vestido com uma túnica e um manto, caminha ágil e contente.

Significado Cultural e Espiritual

A Tavola Bardi não é apenas uma obra de arte; é um testemunho da vida de um homem que dedicou sua existência ao amor e ao serviço. Através de suas narrativas, somos convidados a refletir sobre valores como humildade, compaixão e conexão com a natureza. A arte medieval, exemplificada nesta obra, serve como uma ponte entre o passado e o presente, inspirando novas gerações a trilhar os passos de São Francisco.

Agora, na Basílica de Santa Croce, em Florença, ela está posicionada no alto da nave central, com o altar e o crucifixo ao fundo. Você se perde em sua contemplação. Ela parece ainda maior e mais imponente. Silenciosa, está repleta de significado, e você, pequeno e encantado, a escuta.

Dicas para Visitação


Cristiane de Oliveira

Brasileira do Rio de Janeiro, vive em Florença ha 17 anos. Apaixonada por arte, historia e bons vinhos. Guia de turismo e sommelier na Toscana.

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