Andrea del Verrocchio e Leonardo da Vinci, Batismo de Cristo (cerca de 1470-1475; têmpera e óleo sobre madeira, 177 x 151 cm; Florença, Galerias dos Uffizi, Galeria de Estátuas e Pinturas, inv. 1890 n. 8358)

O “Batismo de Cristo”, obra de Verrocchio e Leonardo da Vinci, preservada na Galeria Uffizi, é uma oportunidade única para examinar a dinâmica entre mestre e aprendiz. Embora muitos artistas tenham abordado o tema do Batismo de Cristo ao longo da história da arte, poucas pinturas são tão notáveis quanto esta, criada por Andrea del Verrocchio (Florença, 1435 – Veneza, 1488) e pelo jovem Leonardo da Vinci (Vinci, 1452 – Amboise, 1519). Esta obra é considerada uma das mais estudadas do Renascimento, tanto por sua complexidade quanto por sua singularidade, permitindo uma análise profunda da colaboração entre um experiente Verrocchio, com cerca de quarenta anos, e um Leonardo ainda em seus vinte.

Um Encontro de Gênios

A pintura é uma das poucas atribuídas com segurança à oficina de Verrocchio, mais reconhecido por suas esculturas do que por suas pinturas, que ainda suscitam debates entre os estudiosos. A primeira menção à parceria entre Verrocchio e Leonardo foi feita por Francesco Albertini em 1510, em seu “Memorial de muitas estátuas e pinturas na cidade de Florença”, destacando “um anjo de Leonardo Vinci”. Contudo, a descrição mais célebre vem de Giorgio Vasari, que, em suas “Vidas”, elogia o anjo pintado por Leonardo, afirmando que ele superava o restante da obra.

Simbolismo e Espiritualidade no Batismo de Cristo

A composição segue a iconografia tradicional do Batismo de Cristo: no centro, Jesus, com as pernas em leve contraposto, recebe o sacramento de João Batista. Cristo inclina a cabeça, com as mãos juntas, enquanto João derrama água sobre seus cabelos. João, equilibrado sobre uma pedra, segura a cruz com a inscrição “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”, do Evangelho de João, enquanto a pomba do Espírito Santo paira acima de Cristo. No topo da composição, as mãos de Deus completam a Trindade, que organiza a cena em um eixo vertical simétrico.

Os protagonistas, Jesus e João Batista, são retratados como figuras maduras, de proporções esculturais e traços realistas. No entanto, a intervenção de Leonardo suavizou as feições de Cristo, conferindo-lhe maior delicadeza. Os dois anjos à esquerda apresentam características distintas: um deles, mais atento, fixa seu olhar nos protagonistas e segura a túnica de Jesus, enquanto o outro, aparentemente distraído, desvia os olhos da cena. No entanto, ambos cumprem um papel crucial ao atrair a atenção do observador e direcioná-la para Cristo e João Batista. A cena se desenrola em um ambiente rochoso, sob um céu límpido e iluminado por uma luz cristalina, com poucas referências vegetais. Destacam-se um bosque sobre a rocha, próximo ao qual se aproxima um falcão (interpretado como símbolo do mal, em contraste com a pomba, que se afasta da cena), e uma palmeira estilizada, representando a vitória de Cristo sobre a morte. Esta última, à esquerda, parece ter sido adicionada por uma terceira mão, possivelmente a mesma responsável por elementos de menor qualidade na obra, como as mãos do Pai, a pomba do Espírito Santo e as rochas atrás de João Batista.


Documentação Histórica

No capítulo de “Vidas” dedicado a Leonardo da Vinci, Vasari retoma o tema do “Batismo de Cristo”, acrescentando detalhes à breve menção feita na biografia de Verrocchio. Segundo Vasari, Leonardo, ainda jovem, teria pintado o anjo à esquerda “de forma tão superior às figuras de Andrea que este, indignado por um aprendiz demonstrar mais habilidade que ele, decidiu nunca mais tocar nos pincéis”. Embora esta anedota careça de comprovação histórica e seja mais um recurso narrativo do que um fato real, é evidente que a pintura reflete o encontro de duas abordagens distintas na composição.

A obra foi produzida em momentos diferentes, como revelaram análises realizadas inicialmente em 1954 e aprofundadas durante a restauração de 1998. Descobriu-se que algumas partes foram pintadas a óleo sobre camadas previamente feitas a têmpera. Elementos como o céu, as mãos de Jesus, seu perizôma, a pomba, o falcão, a rocha com o bosque à direita, a figura de João Batista, o anjo à direita, a túnica de Jesus segurada pelo anjo à esquerda, a palmeira e os seixos à esquerda foram executados a têmpera. Já o cenário de fundo, a água próxima aos pés das figuras, o anjo à esquerda e o corpo de Jesus foram pintados a óleo sobre têmpera.

A Contribuição de Leonardo da Vinci

Leonardo da Vinci não se limitou à execução do anjo loiro mencionado por Albertini e Vasari. As diferenças marcantes entre os elementos da composição levaram estudiosos a atribuir-lhe outras partes da obra, incluindo a paisagem. O historiador De Marchi observa que Leonardo pintou o leito do rio utilizando velaturas a óleo, que hoje apresentam tonalidades acastanhadas devido à oxidação do verniz de cobre. Ele aplicou transparências verde-água, com efeitos de ondas, cobrindo abundantemente, e de forma inovadora, até os pés de João Batista. Em 2019, Roberta Barsanti, diretora do Museu Leonardiano de Vinci, sugeriu que a paisagem do “Batismo de Cristo” pode estar conectada à “Paisagem de 1473”, a obra mais antiga atribuída a Leonardo, preservada no Gabinete de Desenhos e Estampas dos Uffizi.

Desenho Leonardo da Vinci conservado na Galleria degli Uffizi: Paisagem 1473

A paisagem ao fundo apresenta um realismo impressionante, com os contornos das montanhas e o curso do rio cuidadosamente delineados, envoltos em uma leve névoa criada por finas velaturas. A marca de Leonardo é perceptível nos reflexos da água ao redor dos pés de Jesus, especialmente no pé esquerdo, que foi deixado propositalmente inacabado para sugerir ao observador a transparência da água. Leonardo também contribuiu significativamente para a representação do corpo de Cristo, suavizando sua figura. De Marchi sugere que a mão do mestre pode ser identificada no rosto de Jesus, caracterizado por traços marcantes e sensíveis, iluminados por intensos reflexos.

Na parte esquerda da obra, Leonardo interveio novamente, destacando a palmeira e o anjo loiro, cuja presença é admirada. Segundo a historiadora de arte Gigetta Dalli Regoli, a composição original baseava-se em uma simetria entre duas formações rochosas estratificadas. No entanto, Leonardo alterou a parte esquerda, cobrindo a composição inicial e introduzindo um novo elemento. Essa intervenção é evidente no anjo citado por Vasari, que aparece de costas em uma posição incomum, ocupando o espaço de outro anjo mais submisso.

Desenho de cabeça de anjos com cabelos longos e cacheados. Andrea del Verrocchio, Galleria degli Uffizi, Florença. Foto: https://euploos.uffizi.it/

O anjo à direita, por sua vez, pode ser associado a um desenho do Gabinete de Desenhos e Estampas dos Uffizi, o “Retrato de um jovem”, atribuído a Verrocchio e catalogado com o número 130 E.

A Contribuição de Sandro Botticelli e outros artistas

Alguns estudiosos, como Carlo Ludovico Ragghianti em 1954, levantaram a possibilidade de Sandro Botticelli também ter contribuído para o “Batismo de Cristo”. É sabido que Botticelli e Leonardo se conheciam e frequentaram a oficina de Verrocchio. Essa hipótese foi recentemente reforçada pelo ex-diretor dos Uffizi, Eike Schmidt, que, em um guia publicado em 2022, afirmou concordar plenamente com Ragghianti. Schmidt destacou as semelhanças entre o anjo à direita e outras obras de Botticelli, sugerindo aos visitantes que comparem os traços do anjo com os retratos nas salas dedicadas ao mestre renascentista.

Ragghianti também realizou uma análise estilística detalhada da pintura. Ele atribuiu a composição básica em têmpera a Verrocchio, enquanto colaboradores, como Francesco Botticini, teriam trabalhado nas rochas laterais. Botticelli teria feito substituições em algumas partes, e Leonardo harmonizou toda a obra. Suas intervenções incluíram a remoção da parede rochosa à esquerda, revelando elementos da composição original sob a última camada pictórica, e o aperfeiçoamento das figuras centrais.

Fotos: beniculturali.it
Desenhos e esboços realizados no verso da obra de Verrocchio e Leonardo da Vinci

É perfeitamente plausível imaginar que mais de um artista tenha contribuído para a execução da pintura. Vale lembrar, ainda, que no verso da obra há alguns desenhos e esboços rápidos que não podem ser atribuídos aos autores da parte pintada. Segundo Antonio Natali, esses esboços podem ter sido feitos por um artista da oficina de Verrocchio, inspirado pelo dinamismo das figuras de Piero del Pollaiolo, para quem parecem direcionar um olhar atento.

Comparação Estilística dos anjos

Detalhe dos anjos: a direita atribuido a Sandro Botticelli – Esquerda: Leonardo da Vinci

O anjo loiro, no entanto, é o elemento que permite uma comparação direta entre a técnica de Leonardo da Vinci e a do autor responsável pelo outro anjo, possivelmente Botticelli. O anjo à esquerda foi pintado com uma luz difusa única, característica dessa figura, marcando uma das primeiras utilizações conhecidas do sfumato leonardesco. Essa técnica, que suaviza as transições de luz e cor, desfoca os contornos da figura, integrando-a à atmosfera, diferentemente do estilo mais definido e nítido usado anteriormente. O estudioso Martin Kemp descreve esse efeito como “quase impressionista”, enfatizando luminosidade, refração e reflexos em vez de esculpir formas de maneira literal.

As diferenças tornam-se evidentes ao observar os cabelos dos dois anjos. Enquanto os fios do anjo à direita são delineados com a precisão de um ourives, Leonardo utiliza os reflexos de luz para dar movimento e vida aos cabelos do anjo loiro. É notável como os fios brilham e como o rosto desse anjo transmite vivacidade, em contraste com o anjo de cabelos castanhos, mais expressivo, mas sem a mesma delicadeza. Diferenças similares podem ser vistas entre Jesus e João Batista: o primeiro apresenta formas mais modeladas e suaves em comparação ao segundo.

O anjo de Leonardo também representa uma inovação iconográfica significativa. Leonardo rompeu com uma iconografia tradicional ao criar um anjo sem asas e, possivelmente, sem auréola. Esse jovem andrógino, de costas para o espectador, atrai imediatamente o olhar ao contorcer-se, revelando seu rosto encantador e cabelos brilhantes, ofuscando o outro anjo.

A Influência de Verrocchio e Leonardo da Vinci na Arte Renacentista

Batismo de Cristo – Lorenzo di Credi (1495-1500) – Basilica de San Domenico, Fiesole. Foto: beniculturali.it

A pintura recebeu grande reconhecimento, sendo amplamente reproduzida. A versão derivada mais notável, considerada um reflexo fiel da composição original de Verrocchio e Leonardo, é provavelmente a que está preservada em São Domingos, em Fiesole. Esta obra, uma das mais antigas conhecidas, foi realizada por Lorenzo di Credi mais de vinte anos após a peça conservada nos Uffizi. Há também uma interpretação única em cerâmica, criada por Giovanni della Robbia, que frequentemente utilizava as obras de Verrocchio e Leonardo da Vinci como inspiração. Um exemplo disso é a moldura do fonte batismal da igreja de São Pedro, em San Piero a Sieve, que representa uma das transposições mais fiéis.

Dados historicos

Após décadas de análises, surgiram hipóteses sobre a origem da pintura. Acredita-se que ela tenha sido encomendada a Verrocchio por volta de 1468, ou talvez um pouco antes. Esse ano é considerado um possível ponto de partida, pois, em 1468, Simone di Michele, irmão de Verrocchio, tornou-se abade do mosteiro de San Salvi, local onde a obra estava originalmente. Assim, ele poderia ter encomendado a peça ao mestre. No entanto, não há confirmação de que a obra tenha sido criada especificamente para San Salvi, embora essa possibilidade seja plausível. Verrocchio teria iniciado a pintura e, em seguida, delegado parte do trabalho a seus numerosos colaboradores. Quando a obra foi retomada, provavelmente por volta de 1475, o mestre teria confiado ao jovem Leonardo da Vinci a tarefa de finalizar as áreas inacabadas e harmonizar a composição.

O Batismo de Cristo: Sala de Leonardo da Vinci, Gallerie degli Uffizi, Florença

Se por décadas os estudiosos se concentraram em determinar quem contribuiu com o quê na pintura — questão que hoje conta com respostas quase definitivas —, mais recentemente surgiram tentativas de interpretar seu simbolismo. Antonio Natali foi o primeiro a sugerir, em 1998, que por trás do “Batismo de Cristo” havia um comitente com sólida formação teológica. Essa hipótese foi corroborada em 2013 pelo pesquisador Giorgio Antonioli Ferranti, que associou elementos da obra à “Suma Teológica” de Santo Tomás de Aquino. Este comentário aos Evangelhos, escrito pelo Doutor da Igreja, foi impresso pela primeira vez em Roma no período em que a pintura de Verrocchio e Leonardo começou a ser concebida, por volta de 1470.

Suma Teológica de Santo Tomas de Aquino

Leonardo certamente conhecia a obra de Tomás de Aquino, já que o título “Suma Teológica” aparece em um de seus cadernos, o Códice Arundel. Na pintura, há diversas referências ao comentário teológico, especialmente relacionadas à participação da Trindade no batismo. As mãos de Deus, por exemplo, remetem a um conceito agostiniano reafirmado por Tomás de Aquino: a abertura definitiva dos céus, que haviam sido fechados pelo pecado original, após o evento fundamental do batismo. Outros elementos simbólicos incluem o falcão em fuga e as pedras que representam a Igreja. Segundo Tomás de Aquino, a pomba, descrita como um animal “simplex et laetum”, simboliza a paz, pois não possui garras para dilacerar, contrastando com os hereges que destroem a doutrina. Por isso, a presença do pássaro de rapina. Além disso, na “Suma Teológica” lê-se que, no momento do batismo, o Espírito Santo desce sobre a Igreja para preparar os futuros batizados. Assim, a pomba e as pedras do rio se conectam profundamente nesse contexto.

Natali sugeriu identificar o anjo à direita como o arcanjo Miguel, a quem era atribuída uma função psicagógica, encarregado de conduzir as almas ao Paraíso, conforme descrito em escritos apócrifos. Além das hipóteses apresentadas por Natali e Antonioli Ferranti, não surgiram outras tentativas de interpretação iconológica. Leonardo da Vinci, sendo um artista de fé, mas profundamente inovador, dificilmente seguiria de forma estrita uma tradição iconográfica ou reproduziria fielmente as ideias de um doutor da Igreja em suas obras. Pelo contrário, mesmo operando dentro dos limites de seu tempo, Leonardo demonstrava um espírito revolucionário ao desafiar as convenções iconográficas de sua época. Basta observar o diálogo dinâmico de gestos e olhares em “A Virgem das Rochas” ou o enigmático gesto do dedo apontado para cima, presente em obras como “São João Batista” do Louvre e “Sant’Ana” da National Gallery de Londres, cujo significado permanece um mistério. Nesse contexto, o anjo de costas, com sua postura inovadora, também exemplifica essa abordagem única e visionária de Leonardo.

Conclusão

O “Batismo de Cristo” é mais do que uma representação de um evento sagrado; é um testemunho da evolução artística de Leonardo e da complexidade da colaboração entre dois mestres da Renascença. Esta pintura continua a fascinar, convidando-nos a mergulhar em sua rica narrativa e nos segredos que ela guarda.


Cristiane de Oliveira

Brasileira do Rio de Janeiro, vive em Florença ha 17 anos. Apaixonada por arte, historia e bons vinhos. Guia de turismo e sommelier na Toscana.

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