O post de hoje é dedicado a Biblioteca Medicea Laurenziana que é um marco não apenas pela arquitetura inovadora de Michelangelo, mas também pela forma como o espaço foi projetado para valorizar os manuscritos que abriga. Michelangelo conseguiu transformar a experiência de estudo e pesquisa em algo quase sagrado, unindo arte e conhecimento de maneira única.

Um ponto notável é o papel da biblioteca na preservação e disseminação do saber ao longo dos séculos. Durante o Renascimento, a Biblioteca Medicea Laurenziana foi um dos principais centros de estudo humanista, atraindo estudiosos de toda a Europa. Seu acervo, cuidadosamente ampliado por gerações da família Medici, tornou-se uma fonte indispensável para a pesquisa em diversas áreas, como literatura, filosofia, direito e música.
História:
A Biblioteca Laurenziana é um dos mais altos exemplos da arquitetura de Michelangelo. O artista começou a construí-la em 1524, quando já estava envolvido nos trabalhos da Sacristia Nova, por encomenda do Papa Clemente VII. O pontífice, assim, realizava a vontade de outro Papa da família Medici, Leão X, de trazer de volta a Florença a coleção da família que havia sido transferida para Roma, construindo, dentro do claustro de San Lorenzo, uma biblioteca capaz de abrigá-la.
Interrompidas durante o triênio da segunda República Florentina (1527-1530), as obras foram retomadas com a restauração do poder Mediceu, quando Michelangelo, após obter o perdão do Papa por seus passados republicanos, comprometeu-se a concluir o edifício. No entanto, os trabalhos pararam novamente em 1534, com a transferência definitiva do mestre para Roma e a morte de Clemente VII.
Concluída por vontade de Cosimo I, por Bartolomeo Ammanati e Giorgio Vasari, a biblioteca foi aberta ao público em 11 de junho de 1571.
O Tesouro da Biblioteca Medicea Laurenziana
A primazia da Biblioteca Medicea Laurenziana, com seus cerca de 11.000 manuscritos, baseia-se na coincidência de dois fatores, ambos extraordinários: a especificidade das coleções e a natureza do edifício que as abriga, projetado e em parte realizado por Michelangelo Buonarroti. A trajetória da formação desta biblioteca, desde suas origens como a Biblioteca Medicea privada, até seu contínuo crescimento, é marcada por princípios claros e consistentes. Esses princípios se refletem na originalidade dos textos, na excelência filológica e no valor estético dos materiais. Entre os tesouros da Laurenziana, destacam-se códices únicos e antigos que preservam obras de autores como Tácito, Plínio, Ésquilo, Sófocles e Quintiliano. Incluem-se também o Virgílio revisado em 494 por Turcio Rufio Aproniano Astério e o mais antigo exemplar do Corpus Juris de Justiniano, copiado logo após sua promulgação.
A Laurenziana ainda se orgulha de abrigar raridades como uma das três coleções completas dos Diálogos platônicos em papel de alta qualidade, presenteada por Cosimo, o Velho, a Marsilio Ficino para tradução. Entre outros destaques estão o códice Squarcialupi, única fonte da música profana dos séculos XIV e XV; manuscritos autógrafos de Petrarca e Boccaccio; as Histórias de Guicciardini com anotações do próprio autor; e a autobiografia autógrafa de Benvenuto Cellini.
Em particular, a Biblioteca reflete em seu acervo alguns dos momentos mais importantes da história, desde o nascimento até a maturidade do Renascimento florentino. O Humanismo está representado, de fato, pelas presenças, como autores, copistas e proprietários de códices, de figuras como Coluccio Salutati, Poggio Bracciolini, Niccolò Niccoli, Marsilio Ficino e Pico della Mirandola. A escrita humanista encontra na Laurenziana testemunhos importantíssimos, assim como as escolas dos maiores iluminadores florentinos, que se inspiraram parcialmente em artistas como Cimabue, Botticelli, os Pollaiolo e Ghirlandaio.
Desde o grande Cosimo, o Velho, incansável promotor da construção de bibliotecas, até seus descendentes, senhores florentinos e pontífices da Santa Igreja Romana, passando pelos grão-duques Médici e Lorena, que acolheram com inteligência e generosidade essa herança, até os ministros esclarecidos do recém-criado Estado unitário italiano, o critério de excelência guiou a agregação dos acervos privados e públicos ao núcleo original, por meio de expropriações, doações e aquisições.
A história da Biblioteca Medicea Laurenziana é marcada por duas datas importantes que moldaram sua essência e legado. Em 1571, sob o comando do grão-duque Cosimo I, suas portas foram abertas ao público, revelando um espaço magnífico projetado por Michelangelo, ainda que inacabado. Desde o início, os preciosos códices da coleção particular dos Medici foram organizados em bancos chamados plutei, recebendo uma encadernação uniforme em couro avermelhado com o brasão da família. As correntes, que ainda hoje adornam os manuscritos, não apenas remetem aos antigos hábitos de consulta, mas também simbolizam o cuidado em preservar esse patrimônio cultural.
Outra data crucial é 1757, quando Angelo Maria Bandini assumiu como bibliotecário. Durante quase 50 anos, Bandini realizou aquisições criteriosas e criou catálogos monumentais que ainda são referência para pesquisadores. Nos séculos XVIII e XIX, a biblioteca recebeu um influxo significativo de códices, incluindo clássicos latinos, gregos e manuscritos orientais, provenientes de bibliotecas nobres e religiosas. Em 1783, manuscritos preciosos da biblioteca Medicea granducal, antes no Palazzo Pitti, também foram incorporados, consolidando ainda mais a Laurenziana como um tesouro inestimável da humanidade.
Aquisições
Em 1818, o apaixonado bibliófilo florentino Angelo Maria d’Elci presenteou o mundo com sua valiosa coleção de primeiras edições de clássicos latinos e gregos, cuidadosamente encadernadas. No final do século XIX, a Biblioteca Medicea Laurenziana ganhou ainda mais brilho com a aquisição da renomada biblioteca de Lord Bertram Ashburnham, que trouxe preciosos códices, muitos de origem italiana. Entre eles, destacam-se o tratado de Arquitetura civil e militar de Francesco di Giorgio Martini, o códice das Rimas de Petrarca, adornado com as armas de Galeazzo Maria Sforza, e até mesmo um pequeno e fascinante Livro de Horas, possivelmente pertencente à família de Lorenzo, o Magnífico.
A coleção de cerca de 2.500 papiros, um verdadeiro tesouro raro em bibliotecas italianas, surgiu das expedições arqueológicas realizadas no Egito. No início do século XX, esses preciosos documentos começaram a revelar novas evidências da rica produção literária do mundo antigo, incluindo versos inéditos de Safo e Calímaco, encantando estudiosos e amantes da literatura clássica. Durante a Segunda Guerra Mundial, em um esforço para preservar esse patrimônio, os códices foram protegidos na Abadia de Passignano, enquanto os plutei foram escondidos nos subterrâneos da Basílica de San Lorenzo.
Hoje, a Biblioteca Medicea Laurenziana permanece como um verdadeiro santuário de estudos sobre a tradição clássica e humanística, além de continuar ativa na aquisição de itens raros e preciosos no mercado internacional. Entre papiros, códices, impressos raros e documentos, essas aquisições enriquecem o único acervo manuscrito ainda em expansão da Biblioteca que já reúne cerca de 900 unidades, perpetuando sua relevância e fascínio para as gerações futuras.
Visita ao complexo
Claustro dos Cônegos

O claustro principal da Basílica de São Lourenço – conhecido como dos Cônegos – remonta à última fase da reestruturação quinhentista do complexo Laurenziano, promovida pela família Medici. A igreja, dedicada ao mártir Lourenço e oficiada por cônegos, possui fundação antiga e foi consagrada por Santo Ambrósio,bispo de Milão em 393. Em 1418, o Capítulo dos Cônegos solicitou a restauração e ampliação da Basílica, confiando o projeto a Filippo Brunelleschi. As obras começaram em 1419/1420 e foram continuadas após a morte do mestre (1446) por seu discípulo Antonio Manetti Ciaccheri, responsável pela construção do claustro de dois andares, com arcadas em arco pleno no piso inferior e arquitravado no piso superior (1457-1460).
Na parede direita do pórtico de entrada, encontra-se uma Madonna com o Menino em estuque, esculpida ao estilo de Desiderio da Settignano, com moldura em terracota vidrada e datada de 1513. No mesmo lado, podem ser vistas diversas lápides, entre as quais se destaca a encomendada feita por Anna Maria Luiza Ludovica de’ Medici, em memória dos trabalhos de consolidação da Basílica em 1742. No canto ao fundo, está o acesso ao claustro superior, onde se encontra a Biblioteca Medicea Laurenziana. Ao lado, em um nicho, está a estátua de mármore do Bispo de Como, Paolo Giovio (1483-1552), historiador e colecionador, obra de Francesco da Sangallo, de 1560.
Seguindo por este segundo pórtico, encontra-se a porta de acesso à cripta, que abriga os túmulos de Cosimo de’ Medici, o Velho, e do escultor Donatello. Mais adiante, uma porta com frontão dá acesso à Capela do Capítulo dos Cônegos, com assentos de madeira entalhados em estilo tardio do século XV.
Vestíbulo
O ambiente, chamado Ricetto ou Vestíbulo, constitui a entrada da antiga Sala de leitura da Biblioteca Medicea Laurenziana, que tem origem na rica coleção privada de manuscritos que Cosimo il Vecchio (1389-1464) começou a reunir no palácio da família, com a contribuição dos mais ilustres humanistas da época. A coleção atingiu seu máximo esplendor com Lorenzo il Magnifico (1449-1492) e sua ideia de construir uma biblioteca pública se concretizou com seu sobrinho Giulio (1478-1534), que se tornou papa com o nome de Clemente VII (1523). O projeto foi confiado a Michelangelo Buonarroti (1475-1564). Os trabalhos começaram em 1524 e foram levados adiante até 1534, ano da partida de Michelangelo de Florença e da morte do ilustre comitente.
Retomada e concluída sob o ducado de Cosimo I (1519-1574), a Biblioteca foi aberta ao público em 1571. O Vestíbulo se caracteriza pela verticalidade das paredes, divididas em três ordens com colunas duplas embutidas na parede, prateleiras em voluta, janelas em forma de edícula com frontões e emolduradas por lesenas incomumente afuniladas para baixo. A escadaria, com seu design ousado e dinâmico, originalmente pensada por Michelangelo em madeira de nogueira, foi executada em pedra serena em 1559 por Bartolomeo Ammannati, com um modelo do próprio Buonarroti.

De grande originalidade, apresenta uma estrutura em pontão e uma forma tripartida, com rampa central de degraus elípticos. O ambiente foi concebido como um prelúdio escuro à luz da Sala de leitura, mas permaneceu incompleto até o início do século XX, quando foram concluídos os trabalhos da fachada externa, com a abertura de janelas falsas. No teto foi colocado um pano pintado, obra do bolonhês Giacomo Lolli (1857-1931), em imitação do que era de madeira na Biblioteca.
Sala de leitura
Os manuscritos e os antigos livros impressos, dispostos horizontalmente dentro dos bancos, eram divididos de acordo com a matéria (patrística, astronomia, retórica, filosofia, história, gramática, poesia, geografia) e as tábuas de madeira colocadas na lateral de cada pluteu traziam a lista dos livros ali contidos. Os livros ficavam dispostos horizontalmente, presos com correntes a uma barra de ferro colocada dentro do pluteu (podemos ver a barra ainda hoje). Tal disposição foi mantida até os primeiros anos de 1900, quando os manuscritos foram transferidos para os atuais depósitos; os livros impressos, por sua vez, foram entregues à Biblioteca Magliabechiana em 1783.

O teto em madeira de tília (1549-1550) foi entalhado por Giovan Battista del Tasso e Antonio di Marco di Giano conhecido como Il Carota, sempre com base em desenhos michelangelescos. O piso, em terracota vermelha e branca, foi realizado a partir de 1548 por Santi Buglioni sob desenho do Tribolo. A parte central entalhada reflete os motivos ornamentais e as imagens simbólicas, presentes também no teto, alusivas à dinastia medici.
Cosimo I e Clemente VII
Realizadas por último, os esplêndidss vitrais reproduzem o repertório decorativo da heráldica medicea ligado às figuras de Clemente VII (1478-1534) e Cosimo I (1519-1574). A refinada decoração, que une motivos grotescos, armas e emblemas, deve-se, provavelmente, a artesãos flamengos sob o desenho de Giorgio Vasari.
Tribuna D’Elci
Essa rotunda foi construída nos primeiros anos do século XIX para abrigar a coleção doada à Laurenziana em 1818 pelo patrício florentino Angelo Maria D’Elci (Florença 1754 – Viena 1824). Literato e bibliófilo, o conde começou a reunir primeiras edições impressas de autores clássicos, formando uma rica coleção que incluía um grande número de incunábulos (livros impressos na segunda metade do século XV) e edições aldinas. Os volumes datam do século XV ao XIX e são caracterizados por encadernações vivas: couro vermelho para as edições do Quatrocentos e verde para as dos séculos seguintes. D’Elci, entre os últimos anos do século XVIII e as duas primeiras décadas do século XIX, mandou encadernar todos os livros de sua coleção seguindo as tendências da moda anglo-francesa da época.
O projeto da sala, também chamada de Tribuna D’Elci, foi confiado ao arquiteto Pasquale Poccianti (1774-1858). A adição do novo espaço em forma circular exigiu algumas alterações na parede direita da Biblioteca: duas janelas foram fechadas, outras duas cegadas, e uma foi substituída pela porta de entrada. A sala, coroada por uma suntuosa cúpula com caixotões, reflete no estilo neoclássico os elementos dominantes da arquitetura e decoração da Biblioteca: as colunas, a bicromia das paredes e o piso de terracota. A Tribuna, inaugurada em 1841, foi utilizada como sala de leitura até os anos 1970.
Enfim…
A biblioteca continua ativa em suas atividades de preservação e expansão do acervo. As aquisições recentes e os esforços contínuos para conservar itens raros demonstram o compromisso em manter viva a tradição humanista. A Laurenziana não é apenas um depósito de manuscritos; é um centro de diálogo entre o passado e o presente, onde cada visitante pode se conectar com a riqueza intelectual e artística acumulada ao longo dos séculos.
Visitar a Biblioteca Medicea Laurenziana é embarcar em uma viagem pelo tempo, explorando um local onde a história, a arte e o saber se entrelaçam de forma única. Seja pelo fascínio de seus manuscritos, pela imponência de sua arquitetura ou pela atmosfera quase sagrada que permeia cada sala, a Laurenziana permanece como um dos maiores legados culturais da humanidade, um verdadeiro templo do conhecimento e da beleza.
0 comentário