
Michelangelo, o gênio do Renascimento, criou uma obra-prima que transcende o tempo: a Sagrada Família conhecida também como Tondo Doni, pintada para Agnolo Doni, um influente mercador florentino. O casamento de Agnolo com Maddalena Strozzi em 1504 marcou um momento decisivo na arte de Florença, em uma época onde a cidade fervilhava de criatividade, com ícones como Leonardo, Michelangelo e Rafael coexistindo e inspirando-se mutuamente.
Neste ambiente vibrante, Agnolo celebrou suas nobres núpcias com Madalena Strozzi e a chegada de sua primogênita Maria com algumas das mais significativas expressões artísticas da época. Entre elas, os retratos dos noivos, magistralmente capturados por Rafael, e o icônico tondo de Michelangelo, a única pintura sobre madeira que se pode atribuir com certeza ao mestre.
A obra, datada de 1505-1506, é o único quadro de Michelangelo presente em Florença e é considerada uma das obras-primas do Cinquecento italiano.
Michelangelo, em sua busca incessante pela perfeição, havia recentemente explorado as possibilidades do formato circular, muito valorizado no início do Renascimento para as obras devocionais. Suas esculturas, como o “Tondo Pitti” e o “Tondo Taddei”, mostram a Virgem, o Menino e São João em uma composição que domina a superfície, trazendo um vigor impressionante.
O “Tondo Doni” é mais do que uma pintura; é uma escultura em si, onde a composição piramidal do grupo se impõe, quase como uma cúpula que, apesar de sua solidez, pulsa com vida. A interação entre os corpos e os gestos delicados que transmitem a passagem do Menino das mãos de São José para as da Virgem revela uma profundidade emocional que toca o espectador.
Essa riqueza de expressão é fruto do profundo estudo de Michelangelo sobre as esculturas helenísticas, cujas formas serpenteantes e dramáticas estavam ressurgindo das escavações das antigas villas romanas. Obras-primas como o Apolo de Belvedere e o Laocoonte, descobertas em 1506, são referenciadas no quadro, entre figuras de nus que se apoiam em uma balaustra, simbolizando a conexão entre o sagrado e o profano.
Os jovens nus, de identificação complexa, representam a humanidade pagã, separados da Sagrada Família por um baixo muro de pedra serena que alude ao pecado original. Além deste muro, encontramos São João, que sugere uma interpretação batismal da obra.
Uma Composição Articulada

A cena é construída de forma a adotar dois pontos de vista distintos: o grupo central, composto pela Virgem Maria, São José e o Menino Jesus, é apresentado de baixo para cima, enquanto os nus são mostrados de forma frontal. Com essa escolha, Michelangelo buscou evidenciar a diferença entre o mundo pagão e o mundo judaico-cristão. Os antigos pagãos estão distantes de nós, tanto no tempo quanto, principalmente, em termos éticos e religiosos. Em contraste, o mundo cristão é aquele ao qual pertencemos, sendo percebido como mais próximo e, de certa forma, “superior”, em um sentido moral e espiritual.
O grupo central é idealmente contido em uma pirâmide. As três figuras se entrelaçam em um movimento espiralado, intensificado pela torção forçada do busto de Maria, que culmina no abraço envolvente dos personagens. Esse espiral ideal gera um efeito dinâmico acentuado, que se adapta perfeitamente à forma do tondo, projetando as figuras para fora do plano da tábua, em direção ao espectador. As arestas das pernas e dos braços de Maria, Jesus e José se entrelaçam em um ritmo harmonioso. Destaca-se, em particular, o braço da Virgem, apresentado em um ângulo tão eficaz que parece quase romper a superfície da tábua.
Os diferentes planos de profundidade também apresentam duas instalações luminosas diferentes: no fundo, a luz é mais opaca e difusa, em primeiro plano, é mais límpida e direta. Sem dúvida, não se trata de luz natural, mas de uma luz simbólica, de natureza espiritual e intelectual. O mundo pagão e o mundo judeu-cristão pertencem, portanto, a duas dimensões éticas, espirituais e intelectuais diferentes, e cada um é imaginado com sua própria perspectiva e sua própria luz.

Todas as figuras do Tondo Doni apresentam, finalmente, um contorno muito marcado. As cores são frias, claríssimas, transparentes e têm um brilho não natural; em muitas partes são cambiantes e nos principais pontos de luz mudam de uma cor para outra: o amarelo muda para vermelho, o rosa para branco. Essa técnica particular de claro-escuro, muito diferente do sfumato de Leonardo, é chamada de “cangiantismo”. A cor michelangelesca, ao contrário da leonardescas, é um produto do pensamento. A adesão à filosofia neoplatônica levou, de fato, Michelangelo a não representar a realidade como ela era: a arte não deveria reproduzir a natureza, que é mutável e imperfeita, mas apontar diretamente para a representação das ideias, que são perfeitas e imutáveis.
A moldura do Tondo Doni

A moldura do tondo, provavelmente desenhada por Michelangelo e entalhada por Francesco del Tasso, é um espetáculo à parte. Entre cachos vegetais entrelaçados e compostos em uma espécie de candelabro contínuo, emergem cinco cabeças achatadas, que olham para o quadro, representando Cristo no alto do centro, profetas e sibilas. Elas citam as portas do Paraiso do Batistério de Florença realizada por Lorenzo Ghiberti. No setor superior esquerdo, reconhecem-se as três meias luas do brasão Strozzi.
Quanto custa um obra de Michelangelo?

Giorgio Vasari conta que, quando o quadro foi terminado, o artista o fez levar ao senhor Doni por um seu aprendiz, pedindo um pagamento de 70 ducados, mas o senhor Doni, sendo um comerciante, negociou o preço, oferecendo ao aprendiz não mais de 40 ducados. Michelangelo não aceitou a oferta e recuperou o quadro, insatisfeito com a oferta do comerciante. Depois de algum tempo, o senhor Doni voltou a negociar o custo da obra, convencido de querer aquela obra a todo custo. Mas Michelangelo pediu o dobro do que já havia pedido, ou seja, 140 ducados. Nesse ponto, o senhor Doni, para ter o tondo, foi obrigado a pagar o valor desejado por Michelangelo. E então, pensando no senhor Doni, pensando em seu comércio, observando esta magnífica obra de Michelangelo, seu imenso valor, eu fecharia com uma grande frase de Nietzsche, ou seja: De tudo conhecemos o preço, de nada o valor. Friedrich Nietzsche.
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