O ano de 1401 marcou um momento crucial para Florença, exausta por causa da enésima epidemia de peste, que no ano anterior havia matado cerca de 12 mil florentinos, além das ameaças de assédio das tropas de Gian Galeazzo Visconti, duque de Milão. Foi nesse cenário dramático que nasceu uma grande disputa entre dois grandes artistas do Renascimento: o concurso da porta do Batistério de Florença.

Tour do Duomo com guia brasileira de Florença
Piazza Duomo

Em 1401 a Arte di Calimala (Guildas dos mercantes), abriu um importante concurso para realização da segunda porta de bronze do Batistério de San Giovanni. Recordamos que a primeira porta foi realizada por Andrea Pisano e finalizada em 1383, enquanto a última, aquela chamada de Paraíso foi realizada por Lorenzo Ghiberti e finalizada em 1452. Era uma obra pública importante destinada ao edifício religioso mais venerado da cidade o qual a Arte di Calimala era patrona.

Mas quem será que venceu o concurso de 1401, para a realização da segunda porta do Batistério?

O concurso da porta do Batistério de Florença

Para o concurso foi criada uma comissão de 34 juízes, entre eles tinha também o pai de Cosimo Il Vecchio, o banqueiro Giovanni de’ Bicci dos Médicis. Participaram da competição sete ourives florentinos e toscanos. Juntamente com Jacopo della Quercia, um famoso artista da época, encontramos dois jovens com pouco mais de 20 anos: Filippo Brunelleschi que tinha retornado de Pistoia e Lorenzo Ghiberti que retornou de Pesaro para participar do concurso.

Entre os concorrentes participaram também Francesco di Valdambrino, Simone da Colle, Niccolò di Luca Spinelli d’Arezzo e Niccolò di Pietro Lamberti. Os concorrentes deveriam esculpir em apenas um ano um painel de bronze “quadrilobata” como aqueles realizados por Andrea Pisano. O tema biblíco (Gênesis 22,2-13) escolhido foi o sacrifício de Isaque. Foram colocados a disposição dos participantes cerca de 34 kg de bronze.

O tema “Sacrifício de Isaque” foi escolhido por causa da riqueza de detalhes os quais os artistas poderiam utilizar, pois sabemos que na realidade a segunda porta do Batistério foi feita com episódios do Novo Testamento e não do Antigo Testamento que será tema da Porta do Paraíso. Os personagens presentes no painel deveriam ser Abraão no ato de sacrificar o filho Isaque, o carneiro, o Anjo que interfere e impede Abraão e um grupo com dois servos e o assino.

Após cerca um ano, os concorrentes terminaram as suas obras e a comissão pode finalmente iniciar o julgamento. Dos sete concorrentes, dois receberam uma atenção especial durante o jugalmento: Ghiberti e Brunelleschi.

Os únicos dois painéis do concurso que chegaram até nós foram o de Brunelleschi e de Ghiberti, ambos conservados no Museu do Bargello em Florença. Os dois artistas possuíam uma base de formação humanista e foram muitos influenciados pela arte clássica. Mesmo assim, veremos que os dois painéis se diferenciam no estilo.

O Painel de Ghiberti

Ghiberti no seu painel elenca todos os personagens da história bíblica, dividindo a cena em duas faixas verticais, cortada na diagonal por uma rocha. A sua narração é equilibrada e as figuras são proporcionais. A sua cultura clássica é expressada no corpo helênico nu de Isaque.

Ele não representa um drama, mas evoca um antigo rito de sacrifícios. Os personagens são vestidos à moda antiga e o ara (altar de sacrifícios na Roma antiga) é decorado de maneira clássica. A ação ainda não aconteceu e as figuras seguem as curvas da moldura, sem saírem do perímetro, como acontece no painel de Brunelleschi.

O Painel de Brunelleschi

A história representada por Brunelleschi tem a duração mais curta, onde temos uma colisão de três vontades: a do Anjo, a de Abrão e a de Isaque. As expressões faciais dos personagens revelam um verdadeiro combate triangular. No painel de Brunelleschi, as figuras emergem de um fundo plano com grande violência e expressividade que faz com que a obra de Ghiberti pareça uma simples recitação.

O estilo de Brunelleschi deriva da inspiração de uma obra de Giovanni Pisano no Massacre dos Inocentes no púlpito da igreja de Santo Andrea em Pistoia, além da observação da arte antiga, como demonstra a citação do Spinario, presente no canto à esquerda.

No painel, Brunelleschi representa todos os personagens em ação simultânea: o menino que tira o espinho do pé, a mula que bebe água, o outro servo que se abaixa, além dos três protagonistas da cena.

O Resultado do Concurso

As fontes são discordantes quando o tema é o vencedor do concurso. Sabemos seguramente que a porta foi realizada por Lorenzo Ghiberti e que Brunelleschi partiu de Florença para uma viagem a Roma. Lorenzo Ghiberti nos seus “Comentarios” se atribuiu a vitória, mas sabemos através do biografo de Brunelleschi, Antonio Manetti, que os juízes ficaram muito indecisos sobre a quem dar a vitória.

Vasari também nos conta que Brunelleschi não aceitou a vitória junto com Ghiberti porque não queria realizar a porta juntamente com seu adversário por causa da diferença de estilos. Sabemos também que o painel de Brunelleschi tinha um custo maior porque era necessário uma maior quantidade de bronze. Provavelmente esse foi um elemento que os juízes levaram muito em consideração.

Antonio Manetti nos conta uma série de subterfúgios usados por Lorenzo Ghiberti para vencer o concurso, como por exemplo, conhecer em antecipação a obra realizada pelo seu rival ou ainda pedir conselhos as pessoas de como realizar uma obra que agradasse à todos. E você, a quem daria a vitória: a Brunelleschi ou a Ghiberti?


Cristiane de Oliveira

Brasileira do Rio de Janeiro, vive em Florença ha 17 anos. Apaixonada por arte, historia e bons vinhos. Guia de turismo e sommelier na Toscana.

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