Hoje vamos conhecer uma curiosa história que envolveu dois grandes mestres do Renascimento Florentino e dois crucifixos.

O crucifixo de Donatello na Basílica de Santa Croce em Florença

Trata-se de Donatello e Filippo Brunelleschi. Os dois eram grandes amigos e costumavam se encontrar para jogar conversa fora e confabular sobre as coisas difíceis do mundo da arte.

Vasari nos conta:

Donatello que naquela época terminara um Crucifixo de madeira, que foi posto na igreja de Santa Croce, pediu o parecer de Filippo sobre a obra e este respondeu que ele pusera um camponês na cruz. Donato então respondeu ao amigo: “Tira-o do lenho e fá-lo tu”.

Filippo, que, mesmo quando sendo provocado, nunca se irava com coisa alguma que lhe dissessem, ficou silencioso durante muitos meses, até que terminou um Crucifixo de madeira do mesmo tamanho, feito com tanta qualidade e arte, desenho e diligência.

Donato, chamado à sua casa, como que enganado (pois não sabia que Filippo havia feito aquela obra), soltou um avental que ele enchera de ovos e outras coisas para almoçarem juntos, caindo-lhe tudo enquanto ele olhava a obra, sem dar conta de si, tão admirado estava com a engenhosa e exímia maneira com que Filippo esculpira as pernas, o torso e os braços da referida figura, disposta e unificada de tal modo.

Donato, além de se reconhecer vencido, dizia ser aquilo um milagre e que a Brunelleschi foi concedido esculpir um Cristo e à ele, um camponês.

Esta grande obra de Filippo, conhecida hoje como o Cristo dos Ovos é conservada na Basílica de Santa Maria Novella e o Cristo Camponês de Donatello em Santa Croce.

Os dois crucifixos

Crucifixo Brunelleschi – Basílica de Santa Maria Novella – Florença

Os dois crucifixos são de fato muito diferentes, tanto na realização, quanto na interpretação do assunto. O Cristo de Donatello tìem evidentes caracteres góticos, como o curso sinuoso da tanga e o alongamento excessivo dos membros; é construído ao longo de um eixo central, como se a figura estivesse em pé, e requer um ponto de vista frontal.

Ao mesmo tempo, porém, seu naturalismo é inédito, principalmente no rosto, representado no momento de agonia com os olhos semicerrados e a boca entreaberta. É claro que Donatello se concentrou no sofrimento e na humanidade de Cristo, evidenciando o realismo dos traços e o drama do momento, privilegiando o gosto dos franciscanos.

O Crucifixo de Donatello é considerado um dos primeiros trabalhos a serem datados entre 1408-1409 devido à proximidade do relevo com Cristo em piedade para a Porta das Amêndoas de Santa Maria del Fiore em Florença, agora no Museo dell’Opera del Duomo.

O Crucifixo Brunelleschi, datado entre 1410 e 1415, por outro lado, tem uma modelagem muito doce e seu rosto, reclinado sem cansaço, mostra uma expressão desprovida de pathos. O corpo gira para a direita, permitindo vários ângulos de visão que “geravam espaço” ao seu redor, induzindo a observador para um caminho semicircular ao redor da figura.

A altura, que coincide com a largura dos braços e a linha do nariz aponta para o centro de gravidade do umbigo, fazem dele o primeiro exemplo admirável de um “homo ad quadratum” renascentista, construído segundo os ditames vitruvianos.

A obra caracteriza-se por um estudo cuidadoso da anatomia e das proporções, com um resultado marcado pelo essencial (inspirado no antigo), o que enaltece a sublime dignidade e harmonia da obra. Como na Croce de Giotto, nada é acidental ou produzido pela imaginação, mas é fruto de uma elaboração contínua, racional e teológica, motivada pela ordem do mundo e de suas coisas. Enfim, o Crucifixo de Brunelleschi é um nu ideal.


Cristiane de Oliveira

Brasileira do Rio de Janeiro, vive em Florença ha 17 anos. Apaixonada por arte, historia e bons vinhos. Guia de turismo e sommelier na Toscana.

2 comentários

Felix · novembro 11, 2023 às 1:25 pm

Um incidente realmente bem interessante. Acho que deveria citar a fonte, a “Vida dos artistas” de Giorgio Vassei.

    Cristiane de Oliveira · novembro 18, 2023 às 11:15 pm

    Obrigada. Vou adicionar a fonte. Somente uma pequena correçao: o nome do autor do Livro Vida dos Artistas é Giorgio Vasari.

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