Durante a Semana Santa recordamos os últimos dias da vida terrena de Jesus: Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo. Assim, para celebrar os dias mais importantes da fé cristã, vamos ilustrar os principais episódios da Semana Santa com obras realizadas por Beato Angélico no Mosteiro de San Marco em Florença.

Se você tiver interesse em conhecer um pouco mais sobre esse grande artista, fazer uma visita guiada no Museu de San Marco ou ainda um tour temático sobre o Beato Angélico, entre em contato com a gente. Faremos um tour sob medida para você!

Um pouco sobre Beato Angélico

Guido di Piero nasce em Vicchio, no Mugello, a região montanhosa no norte de Florença, no final do século XIV. Não conhecemos o ano exato e ainda hoje, isso é um tema muito discutido pelos historiadores. O primeiro documento que temos sobre Beato Angélico é datado de 1417, o qual exercitando a profissão de pintor, é inscrito como membro na Compagnia di San Niccolò del Carmine. Nessa época, ele já deveria ser um pintor importante, pois no ano sucessivo é datada a sua primeira obra para a igreja de Santo Stefano al Ponte em Florença.

Somente em 1423, temos um documento no qual ele é identificado como Frade Giovanni de San Domenico em Fiesole: era o pagamento de um Crucifixo, hoje perdido, para a Basílica de Santa Maria Novella.

Fra Giovanni – este é o nome que Angélico adotou durante a sua vida religiosa na ordem dos dominicanos, concebeu a pintura como forma de sua vocação: a predicação, para ele, não era feita por palavras, mas com as cores e as formas das suas obras. “Contemplari et contemplata aliis tradere” (contemplar e doar aos outros aquilo que é contemplado – tradução livre): assim São Tomas de Aquino, sintetizou o carisma domenicano.

Assim, Beato Angélico, comunicou através da pintura a grande experiência da sua fé e do seu relacionamento com Cristo. Esta ligação profunda entre a fé e expressão artística é visível na sua arte. Fra Giovanni trabalhou por mais de 30 anos como pintor e miniaturista.

Provavelmente no início de 1439 Fra Giovanni se transferiu de Fiesole para o Monteiro de San Marco em Florença. E é aí que começa a nossa história: quando o frade pintor começa a afrescar as salas e as celas do mosteiro.

Em 18 de fevereiro de 1445, Fra Giovanni morreu em Roma, sendo sepultado na igreja Santa Maria sopra Minerva. Poucos anos após a sua morte os fiéis, compreendendo a lição deixada por ele através das suas obras, começaram a chamá-lo de Angélico.

Em 03 de outubro de 1982, o Papa São João Paulo II autorizou o seu culto litúrgico. O mesmo Pontífice, proclamou Angélico Patrono Celeste e Modelo Concreto para os artistas contemporâneos em 18 de fevereiro de 1984. Por esta razão ele é conhecido como Beato Angelico.

O ciclo de Afrescos no Mosteiro de San Marco

Uma das celas afrescadas por Beato Angélico no Museu de San Marco em Florença

O Mosteiro de San Marco em Florença é um local único no mundo. Imaginem um inteiro mosteiro afrescado por um grande mestre do Renascimento Florentino? De fato, Beato Angélico deixou uma obra em cada um dos ambientes do mosteiro, incluindo as celas dos frades: são mais de 50 afrescos, a maioria dos quais era destinado a um único frade que habitava aquela cela, rígida clausura para todos. Parece inacreditável que um grande artista renascentista, no cume da sua carreira artística, pinte uma obra-prima para cada um dos frades do mosteiro.

Somente em 1869, o mosteiro foi musealizado e assim foi possível abrir ao público os extraordinários afrescos realizados por Angélico. No artigo de hoje, A Semana Santa com Beato Angélico, vamos compartilhar com vocês algumas dessas obras-primas.

A Semana Santa com Beato Angélico

Crucificação e Santos da Sala do Capítulo

Crucificação, Beato Angélico, Museu de San Marco, Florença

No Mosteiro de San Marco, Beato Angélico afrescou diversas crucificações, tema muito caro a espiritualidade dominicana e em cada uma delas nos conta um momento especial da história evangélica. Na crucificação da Sala do Capítulo, o momento representado é aquele do diálogo com o bom ladrão:

«Então um dos malfeitores que estavam pendurados, blasfemava dele, dizendo: Não és tu o Cristo? salva-te a ti mesmo e a nós. Respondendo, porém, o outro, repreendia-o, dizendo: Nem ao menos temes a Deus, estando na mesma condenação? E nós, na verdade, com justiça; porque recebemos o que os nossos feitos merecem; mas este nenhum mal fez. Então disse: Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino. Respondeu-lhe Jesus: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso.» (Lucas 23:39-43)

Beato Angélico traduz este episódio do Evangelho representando de forma diferente os dois personagens crucificados com Jesus: aquele da direita não olha Cristo e o seu rosto é caracterizado por um grito desesperado; o da esquerda, possui um rosto belíssimo e o olhar é fixado no Senhor.

Crucificação, Beato Angélico – detalhe

Aos pés da Cruz, à direita, um grupo que é citado no Evangelho, assiste a crucificação: Maria, a mãe destruída pela dor é sustentada pelo apóstolo João, Maria de Cleofa e Maria Madalena. Esta última é representada de costas, com os cabelos loiros soltos a recordar a sua antiga profissão de prostituta. O vestido vermelho de Madalena é símbolo de amor: a tradição iconográfica representa aquilo que Jesus disse a ela no Evangelho de Lucas (7,47): “Por isso te digo, que os seus muitos pecados lhe serão perdoados, porque muito amou”.

À esquerda do grupo, João Batista, padroeiro de Florença, indica Cristo, a quem observa, enquanto Marcos, o evangelista titular do mosteiro, tem o dedo indicador apontado para o evangelho aberto. Em seguida, os santos padroeiros da família Medici, mecenas do mosteiro: São Lorenzo, São Cosme e Damião.

Uma multidão de santos se encontra à esquerda de Cristo: são os fundadores das ordens religiosas, ou seja, aqueles que receberam um carisma do qual é gerado um grande movimento de fé.

Noli me tangere

Noli me tangere – Beato Angélico – Museu de San Marco, Florença

Na primeira cela do corredor leste encontramos o Noli me tangere, que significa “Não me toques”: trata-se da versão latina das palavras ditas por Jesus à Maria Madalena, quando Ele é reconhecido por ela após a Ressurreição.

Angélico nos dá uma versão belíssima deste episódio evangélico, que representa os primeiros momentos da aparição de Cristo Ressuscitado: a cena é ambientada em um jardim que recorda o Paraíso perdido e agora doado novamente à humanidade, pela Ressurreição de Cristo; Jesus ainda possui as chagas da morte, mas o seu corpo há uma estranha leveza. Cristo segura com a mão esquerda uma enxada e Madalena, inicialmente, o confunde com o responsável do jardim, mas quando é chamada pelo nome, ela reconhece naquele homem, o Senhor. Madalena, estendendo os braços, se joga aos pés de Cristo mas é retida por Ele que lhe diz para correr e anunciar aos discípulos o milagre da Ressurreição.

Lamentação de Cristo (Compianto sul Cristo Deposto)

Na cela dois do corredor leste, encontramos a cena do Compianto: entorno ao corpo do Senhor temos os seus amigos: a Virgem Maria que apoia a sua cabeça, Maria Madalena nos pés que tempos atrás havia inundados de perfume e lágrimas, João e a outra Maria ao lado de Cristo. A cena sacra é completada pelo fundador da Ordem Dominicana, São Domingos, que contempla a cena em pé, à esquerda.

A mensagem de Angélico é universal: podemos contemplar o Mistério de Cristo com a mesma intensidade dos primeiros discípulos, participando realmente da cena através da contemplação, assim, Cristo é uma presença real na nossa vida.

Transfiguração de Cristo

Na cela três do corredor leste, encontramos a Transfiguração: Jesus, para sustentar os seus discípulos da eminente prova da sua Paixão e Morte, no Monte Tabor se transfigura, fazendo com que os apóstolos experimentassem uma antecipação da Ressurreição.

Beato Angélico obedece fielmente ao conto evangélico: Jesus, com roupas branquíssimas, com o corpo em posição de crucificação, é cheio de glórias.

Ao lado de Cristo o rosto de Moisés e Elias: a lei e a profecia, as duas grandes dimensões da história judaica indicam Cristo como Salvador.

Cristo zombado

Cristo Zombado, Beato Angélico, Museu de San Marco

Na sétima cela do corredor leste, temos a representação de Cristo zombado (Cristo Deriso em italiano), uma iconografia que surpreende qualquer visitante dos dias de hoje. São Domingos, em baixo à esquerda, está meditando o Evangelho da Paixão de Cristo, e ao lado dele, Maria. Angélico indica com a pintura que devemos ler o Evangelho junto com Maria, imagem da Igreja.

Enquanto Domingos lê, ele também “vê” o episódio evangélico que acontece nas suas costas: Jesus é ridicularizado. Sentado em alguma coisa que recorda um trono, lhe foi dado um pedaço de pau, como se fosse um falso cedro: a coroa é de espinho, o rosto vendado é atingido por tapas, socos e cuspes.

As Marias no Santo Sepulcro

As Maria no Sepulcro, Beato Angélico, Museu de San Marco, Florença

Na cela oito do corredor leste, encontramos as Marias no Sepulcro: as mulheres vão no Santo Sepulcro de Cristo o depois de comprarem os “óleos aromáticos” para terminar a unção do corpo de Jesus e o encontra vazio. O olhar consternado das mulheres é concentrado na tumba, mas um anjo indica um Cristo Ressuscitado.

Detalhe das Maria – Beato Angélico

A representação das mulheres um pouco assustadas e reunidas em um único grupo segue a mais tradicional iconografia que remonta aos antigos  ícones bizantinos, enquanto o detalhe – esplêndido, muito original – de Maria Madalena, representada no ato de olhar, incrédula, para dentro da tumba vazia, protegendo-se com a mão direita, enquanto a esquerda repousa na beira do sepulcro, num belo vislumbre, de grande intensidade é algo típico de Fra Angélico.

Mais uma vez, São Domingos, em joelhos, contempla o Mistério Supremo da Fé.

Descida de Cristo ao Reino dos Mortos (Inferi)

Descida ao Limbo, Beato Angélico, Museu de San Marco, Florença

Na cela 28 do corredor norte, encontramos a Descida de Cristo ao Limbo, chamado também de Reino dos Mortos ou Inferi: Jesus Ressuscitado inunda com a sua luz a escuridão do inferno e agarra vigorosamente Adão, o primeiro da fileira dos homens libertados pelo seu sacrifício. A salvação de Deus feito homem não é somente o presente e o futuro, mas é também o passado, redimindo quem estava à espera do Redentor.

O Limbo era aquele lugar/estado onde aqueles que haviam morrido com a dívida do pecado original, ou seja, sem receber o sacramento do batismo se encontravam. A partir de Fra Angelico (ou melhor, a partir do século XIII), o Limbo era identificado como o estado daqueles que, na vida após a morte, desfrutavam de uma condição natural sem, no entanto, alcançar a visão beatífica de Deus.

No  Limbo de Angélico, Cristo, no esplendor de sua aparência, entra como se estivesse suspenso entre o céu e a terra. Os demônios que guardam os portões do submundo são esmagados por aldravas, derrubados pela entrada do Senhor. Outros, deslumbrados com a luz, refugiam-se na escuridão  de uma caverna.

O mal não pode suportar a santidade. Assim, o Frade Pintor poderia, através da sua arte, lembrar que o objetivo definitivo (paraíso) é decidido a cada momento escolhendo a luz, contra as trevas, a verdade contra a mentira, a santidade contra a malignidade.

Sermão na Montanha

Sermão na Montanha, Beato Angélico, Museu de San Marco, Florença

Na cela seguinte (29), é representada o Sermão na Montanha: Jesus pronuncia a palavra que a humanidade espera: a vida é uma promessa de felicidade, de beatificação, possível também para os pobres de espírito.

Angélico ambienta a cena em cima de uma alta montanha, que recorda o Monte Sinai, onde Moisés recebeus as sagradas escrituras. Os discípulos estão sentados ao redor de Cristo, como se fossem alunos e escutam aquelas palavras de felicidade na tristeza, a certeza do bem em cada prova.  A seriedade das atitudes e dos rostos dos apóstolos deixa claro que  estão ouvindo palavras de particular importância. As roupas dos apóstolos são de cores diferentes para indicar a variedade de pessoas que, ao redor de Jesus, formam um único povo que escuta sua palavra.

Entre os apóstolos, Judas, o discípulo que irá trair a amizade de Cristo, possui a auréola preta. Jesus aperta um rolo fechado com a mão esquerda, significando que a Palavra de Deus se manifesta Nele, e tem a mão direita levantada com o dedo indicador apontando para cima, a sugerir a origem e a fonte de suas palavras: Deus Pai. O pergaminho fechado sugere que ele está falando aos Doze como legislador, pois desde o início da era cristã, o pergaminho na mão de Jesus faz alusão à nova lei do amor que Cristo deu ao mundo.

A Captura de Cristo

Captura de Cristo, Beato Angélico, Museu de San Marco

Em um tom muito enfático, Angélico nos conta a Captura de Cristo na cela 30: Judas beija Cristo e Pedro, para defender o Mestre, corta a orelha do servo de Sinédrio. A cena é repleta de movimento, as cores são fortes, o gesto de Pedro é carregado de excessiva impetuosidade.

A agonia de Jesus no Horto das Oliveiras

Representada na cela 31, a Agonia de Jesus no Horto. Na vigília da sua Paixão, Cristo é em oração no horto das Oliveiras: três apóstolos, Pedro, Tiago e João foram convidados para fazer companhia neste momento terrível.

Enquanto os apóstolos adormecem, em primeiro plano estão em vigília em suas casas Marta e Maria, irmãs de Lázaro. Somente a intuição de um frade pintor poderia imaginar tal cena. Para Beato Angelico, a solidão de Jesus no jardim das oliveiras não era total, porque as mulheres, suas amigas, ​​o apoiavam orando.

Reparem os nomes dos personagens, escritos nas auréolas.

Instituição da Eucaristia

Instituição da Eucaristia, Beato Angélico, Museu de San Marco, Florença

Na cela sucessiva (32), a Instituição da Eucaristia, nos conta o momento no qual Cristo sentado à mesa com os apóstolos, doa o seu Corpo e o seu Sangue: é o gesto culminante do Seu amor.

Nenhum alimento aparece na mesa, apenas o perfil traçado de alguns copos, dos quais permanecem apenas os vestígios grafitados, mas que não foram coloridos. Talvez seja uma alusão ao fato de que o alimento da vida é o próprio Cristo que, no gesto da Eucaristia, se entrega como pão da vida eterna.

Também muito original é a representação de Maria à esquerda, um passo à frente em relação aos apóstolos, ajoelhada e meditativa, a recordar a presença feminina no coração da vida da igreja.

A escolha da iconografia realizada pelo Angélico é muito original, pois a sua representação da última ceia coincide com a cena da instituição da Eucaristia: Jesus é retratado no ato de distribuir aos apóstolos a Eucaristia, em um ambiente que reproduz o refeitório do mosteiro.

Jesus no Sepulcro

Jesus no Sepulcro – Beato Angelico – Museu de San Marco – Florença

Na cela 24 o afresco representa Jesus no Sepulcro: o tema é muito parecido com o da cela 07, onde São Tomás de Aquino contempla, junto com Maria o mistério da Paixão de Cristo: em frente aos seus olhos, aparece no Sepulcro, o Corpo de Jesus, com os olhos fechados e a cabeça inclinada.

Ao redor de Jesus, vemos os instrumentos e eventos da sua morte: a espuma com vinagre, a lança que feriu o seu Corpo, a tocha que foi usada na sua captura de noite no Monte das Oliveiras, a cruz, o beijo de Judas, os pregos, o dinheiro da traição, a coluna da flagelação, etc.

Cristo pregado na Cruz

Jesus Pregado na Cruz – Beato Angélico – Museu de San Marco, Florença

A cena representa de modo não muito usual o momento no qual Jesus, depois de subir na cruz com o auxílio de uma escada, é fixado na cruz com os pregos.

Com exceção do choro de Maria e Maria Madalena, não vemos nenhuma dramaticidade na cena: os servos pregam Cristo na cruz com muita indiferença; os três personagens – provavelmente são representantes das autoridades civil, militar e religiosa, unidos na condenação de Cristo, conversam amavelmente. Cristo morre no meio da inconsciência do seu sacrifício: da sua boca saem as palavras mais tristes da Paixão: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem.”

Cristo e o bom ladrão

Cristo e o bom ladrão, Beato Angélico

Na cela 34, temos Cristo e o bom ladrão: aos pés da cruz Maria e João Evangelista, São Domingos e São Tomas de Aquino. Jesus está dialogando com o mal feitor: “ Em verdade te digo que hoje estarás no paraíso comigo.” Tais palavras saem da boca de Cristo, como se fosse uma revista em quadrinhos.

Aproveito a oportunidade de desejar à Todos uma excelente e Santa Páscoa!


Cristiane de Oliveira

Brasileira do Rio de Janeiro, vive em Florença ha 17 anos. Apaixonada por arte, historia e bons vinhos. Guia de turismo e sommelier na Toscana.

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