Uma Arte Perdida Ganha os Holofotes em Florença
Uma nova e surpreendente exposição foi inaugurada esta semana na Galleria degli Uffizi: “C’era una volta. I Medici e le arti della ceroplastica”, em cartaz de 18 de dezembro de 2025 a 12 de abril de 2026. Este evento lança luz sobre um meio artístico muitas vezes esquecido, mas profundamente cativante: a cera. Por sua natureza macia, neutra e de incomparável maleabilidade, a cera possui a capacidade única de imitar as características da pele como nenhuma outra, unindo, como descreveu o erudito Giovanni Fabbroni em 1793, “com singular magia os efeitos combinados da Escultura e da Pintura no complexo das Cores mais vivas e das formas mais macias”. A exposição — e este artigo — tem como objetivo resgatar do esquecimento este incrível âmbito criativo perdido, revelando não apenas seu esplendor técnico e expressivo, mas também o papel de vanguarda que a família Médici desempenhou como colecionadora e patrona desta arte singular.
1. Raízes Antigas, Devoção Renascentista: Os Votos de Cera
Das Máscaras Romanas aos Ex-Votos Florentinos
A arte de modelar a cera tem raízes profundas na história. Plínio, o Velho, em sua História Natural, descreve a antiga tradição romana de criar máscaras de cera (“expressi cera vultus”) dos ancestrais, que eram exibidas com orgulho nos átrios das casas patrícias como um elo tangível com o passado. No entanto, foi no Renascimento florentino que a cera encontrou um novo e poderoso propósito, desta vez ligado à fé. O material foi amplamente utilizado para a criação de “imagini” ou votos, que eram ofertas devocionais doadas a igrejas em agradecimento por uma graça recebida. Essas figuras, que podiam representar partes do corpo curadas, figuras humanas inteiras ou até mesmo animais, enchiam santuários como a basílica da Santissima Annunziata em Florença, transformando o espaço sagrado em um museu vivo da fé e do milagre popular.
2. Os Médici: Transformando a Cera em Arte e Poder
Foi sob o patrocínio dos Médici que a ceroplástica transcendeu suas origens devocionais para se tornar uma forma de arte refinada e um instrumento de poder.
Lorenzo, o Magnífico, e um Retrato para a Sobrevivência

Um dos episódios mais dramáticos da história florentina marcou um ponto de virada para a arte da cera. Em 1478, após sobreviver milagrosamente à Conspiração dos Pazzi, um atentado que ceifou a vida de seu irmão Giuliano, Lorenzo de’ Medici encomendou três retratos de si mesmo em cera, em tamanho natural, como ex-votos de agradecimento. O que tornou esta encomenda extraordinária foi a colaboração inédita entre o grande escultor Andrea del Verrocchio e o mestre artesão da cera, Orsino da família Benintendi. Segundo Giorgio Vasari, os conselhos de Verrocchio elevaram a técnica de Orsino, transformando as figuras, que antes eram consideradas desajeitadas, em obras de um realismo e uma qualidade artística nunca antes vistos. As fontes revelam que não se tratava de um simples intercâmbio: era o escultor a ensinar ao artesão como executar um ex-voto “nas formas da arte dignas de um príncipe”. Esta parceria marcou o momento em que o retrato em cera deixou de ser apenas um voto para se tornar uma obra-prima.
Dos Grandes Príncipes às Coleções Privadas

No final do século XVI, o interesse pela cera diversificou-se, movendo-se do espaço público da igreja para o ambiente íntimo das coleções privadas. Bianca Cappello, a controversa esposa veneziana de Francesco I de’ Medici, foi uma figura central nesta transição. Em seus “camerini” privados no Casino di San Marco, ela reuniu uma coleção seleta de retratos em cera de “gentildonne” (nobres damas) venezianas. Com este gesto, Bianca transformou a ceroplástica em um meio para a expressão de gostos pessoais e para a criação de galerias de retratos íntimos, consolidando a cera como um material de prestígio, digno das mais sofisticadas coleções principescas.
3. A Obsessão Barroca: Os “Teatrini” Macabros de Gaetano Giulio Zumbo

Se o Renascimento deu à cera um propósito devocional e político, o Barroco, uma era obcecada pela passagem do tempo, explorou seu potencial para o dramático e o macabro. O mestre indiscutível desta sensibilidade foi o artista siciliano Gaetano Giulio Zumbo. Protegido e comissionado principalmente pelo Gran Principe Ferdinando de’ Medici, Zumbo criou composições em miniatura de um realismo desconcertante, conhecidas como “teatrini” (pequenos teatros).
Duas de suas obras mais famosas, presentes na exposição, são “A Peste” e “O Triunfo do Tempo”. Nestas caixas cênicas, Zumbo utiliza a plasticidade da cera para criar cenas apinhadas de corpos em decomposição, explorando com detalhes minuciosos e perturbadores os temas da mortalidade, da vaidade da glória humana e da inevitável decadência do corpo. Suas obras não são meros espetáculos de horror, mas profundas meditações filosóficas sobre a condição humana, levadas à sua máxima expressão pelo realismo visceral que só a cera poderia proporcionar.
4. Um Tesouro Disperso e Redescoberto

Por que uma arte tão expressiva e apreciada quase desapareceu da história? Dois fatores principais contribuíram para o seu esquecimento. O primeiro é a substancial deperibilidade do material: a cera é frágil, sensível ao calor e ao tempo, o que levou à perda de inúmeras obras. O segundo foi a resistência da crítica em aceitá-la entre as “artes maiores”, muitas vezes relegando-a à categoria de artesanato ou curiosidade. Um golpe devastador para a coleção Médici veio em 1783, quando o Grão-Duque Pietro Leopoldo di Lorena, em um esforço de modernização e racionalização das coleções, ordenou a venda em leilão de grande parte das obras em cera, dispersando um patrimônio artístico inestimável. A exposição “C’era una volta” assume, portanto, o papel crucial de resgatar a ceroplástica daquilo que os historiadores descrevem como uma espécie de inconsciente da história da arte, revelando finalmente o seu esplendor e a sua importância.
Uma Viagem no Tempo Espera por Você
A arte da cera, sob o olhar atento e vanguardista dos Médici, percorreu uma jornada fascinante: das ofertas de fé na Santissima Annunziata às refinadas coleções de Bianca Cappello, culminando nas complexas e sombrias alegorias barrocas de Gaetano Zumbo. Cada peça conta uma história não apenas sobre a técnica, mas sobre as esperanças, os medos e as obsessões de uma época. A exposição na Galleria degli Uffizi oferece uma oportunidade única de testemunhar estas obras-primas raras, reunidas pela primeira vez para contar a história de um capítulo esquecido, mas brilhante, da arte italiana. Não perca a chance de descobrir pessoalmente este tesouro redescoberto.
- Exposição: C’era una volta. I Medici e le arti della ceroplastica
- Local: Galleria degli Uffizi, Florença
- Datas: 18 de dezembro de 2025 a 12 de abril de 2026






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